top of page

Entrevista:Dalila Teles Veras

Portuguesa, cidadã honorária andreense, poeta, avó, livreira, agitadora cultural , artífice. Dalila Teles Veras é verdadeiro um prisma. Seriam necessárias diversas entrevistas para dar conta da complexidade desta que é uma das personalidades mais importantes de Santo André. Ou, não, talvez apenas uma frase, dita por ela mesma, dê conta: "Sou o que li".

Criadora de uma verdadeira referência na vida cultural do Grande ABC, o espaço cultural Alpharrabio, que já existe ha 23 anos, ela sabe com ninguém a importância que a cultura tem na socidedade e o quanto ela tem sido negligenciada. De todas as Dalilas, selecionamos três. Vamos a elas.

Foto: Cecília Camargo / Reprodução Facebook

PassarelaZine - Vamos falar com a Dalila poeta. Para começar, uma pergunta abstrata: no princípio era o verbo?

Dalila - Não, no princípio era o Caos. O verbo veio para ordenar, mas também para estabelecer o desassossego.

P- Como você se define como artista(se é que você se define) ?

D- Escolhi a palavra como ofício e com ela me expresso artisticamente, ou seja, a palavra com intenção estética que é literatura. Assim, me defino como artífice.

P- Qual sua relação com seus autores prediletos? Quais são eles?

D- Eu diria que é uma relação promíscua. Como são muitos os meus autores prediletos, vou de um a outro com volúpia, não sou fiel a nenhum, leio-os simultaneamente. Estabeleço uma relação de absoluta intimidade com eles, aproprio-me de suas frases e versos para usa-los como epígrafe ou até mesmo como mote para meus poemas. Conheço detalhes de sua trajetória literária, corro atrás das edições mais antigas de seus livros. Não me interesso tanto por obras completas. É indescritível a sensação de folhear um livro publicado ainda em vida de um escritor já desaparecido, tal como ele o concebeu e tentar imaginar que esse exemplar tenha, eventualmente, passado por suas mãos. Tento também estabelecer comparações com edições seguintes revistas pelo próprio autor. O mundo dos livros e da leitura é um mundo mágico e de infinitas possibilidades. Sou o que li.

P- Uma frase muito repetida é aquela que diz que só quem lê literatura (que não seja bestseller) são outros escritores, ou aquele que quer um dia se tornar escritor. Você concorda ?

D- Ainda que tenha constatado que esses são raros, como sempre foram, conheço alguns bons e agudos leitores com quem, inclusive, troco experiências de leitura. Quanto àqueles que leem pensando um dia em se tornarem escritores, é inevitável e nada mais natural. Não existe nenhum bom escritor sem que antes, muito antes, tenha sido um bom leitor.

P- Agora as perguntas são para a Dalila livreira: há quem diga que em muito tempo os jovens não liam tanto, graças a séries como Harry Potter , Percy Jackson ou Crepúsculo. Você acredita que estes leitores conseguem migrar para uma leitura mais “madura” ou permanecem reféns dos best sellers ?

D- Tenho algumas dúvidas, mas também não duvido que aqui e ali, um deles migre para a literatura, aquela que pode até ser bestseller, mas não foi escrita com essa intenção. Via de regra o leitor de bestseller bem como do gênero conhecido como auto-ajuda, que, diga-se, nada tem a ver com literatura, raramente se interessa por algo, como você diz, mais "maduro" e que eu diria, com linguagem mais elaborada e complexa. A literatura de entretenimento é construída de forma a dizer o que o leitor espera que diga, não cria nenhuma "dificuldade" de linguagem que remeta a outra leitura que não seja aquela prevista no roteiro feito para entreter e nada mais. Eu não conheço nenhum leitor desse gênero que discuta ou busque alguém para discutir aspectos desses livros. Esses livros são o que são, descartáveis. Uma coisa é certa, essa leitura (que não é condenável, afinal) deve ser tão viciante quanto a outra. Prova disso é que seus leitores fiéis, engatilham a leitura de livro noutro e as editoras, conhecedoras profundas de seus hábitos, encarregam-se de abastecer rapidamente as prateleiras com as "novidades" do gênero.

Vez por outra um bom autor rompe essa lógica e faz da boa literatura um bestseller e isso é bom e deveria, se as editoras não tivessem receio de arriscar, ser mais frequente. Temos casos recentes, como o Paulo Leminski que, ajudado por uma maciça campanha publicitária, em determinado momento, chegou a superar em vendas os tais 50 tons.

P- Atualmente se fala na ameaça que gigantes do comércio virtual como Amazon e Google representam para as livrarias, até mesmo as megastores. Como fica uma livraria do porte da Alpharrabio nos tempos atuais ? Qual seu público? Como sobreviver?

D- A livraria Alpharrabio permanecerá na contramão de toda e qualquer lógica do mercado e das tendências "megas" . Somos assumidamente nanicos e não temos nenhum plano B para nos tornarmos nada mais do que isso. A livraria foi criada para dar sustentação a um projeto cultural que veio a se tornar um polo difusor e fomentador da produção cultural e do debate de ideias.

Muito mais que uma simples livraria de livros usados, o Alpahrrabio (com artigo masculino, como os frequentadores se referem à livraria - "o" centro cultural), foi idealizado e assim o é, como um lugar de estar, onde as pessoas se reconhecem como seres culturais, um lugar com significados e de pertencimento. Por sua ação ininterrupta há mais de duas décadas, tornou-se referência cultural no Grande ABC o que nos deixa, sem falsa modéstia, bastante orgulhosos. E tudo isso, como se verifica, passa ao largo das disputas mercadológicas. O tempo da cultura é outro, é um tempo de construção e de processos, jamais o de resultados imediatistas do lucro.

P-Diga-nos alguns momentos marcantes na história do Alpharrabio.

D- Difícil destacar dentre as mais de 1.000 atividades realizadas de forma ininterrupta ao longo destes 23 anos de Alpharrabio, alguns momentos marcantes porque foram muitos. E quanto digo mil, não se trata de nenhuma figura de linguagem para expressar genericamente "inúmeros". São realmente mais de mil atividades contabilizadas, sendo que 524 delas (média de uma por semana) estão registradas em forma de verbetes no livro "Alpharrabio 12 anos - uma história em curso", publicado em 2004. Daí pra cá já acumulamos material suficiente para novo volume tão alentado quanto aquele. Eu diria que todos os momentos foram marcantes, cada um com sua especificidade. Nada do que ocorreu ali foi determinado por qualquer visão mercantilista ou para preencher vazios e agenda. Todos fizeram parte de um processo que inclui a reflexão e o debate e um desejo sincero de fazer circular e discutir ideias.

Diferentemente da impessoalidade de um lançamento numa megalivraria, todo lançamento de livro que ali realizamos é revestido de sentidos. Jamais colocamos um autor sentado atrás de uma mesa se limitando a autografar. Há sempre uma conversa entre o autor e os presentes, uma apresentação, leituras, enfim. O mesmo acontece com um espetáculo teatral, com uma abertura de exposição, etc. Não há cobrança de ingressos. A contabilidade dos números não bate, mas a contabilidade cultural que é outra, com outro tempo, um tempo que não visa resultados imediatos, sempre nos proporciona incríveis momentos de satisfação.

P- Pergunta para a Dalila ativista cultural: Santo André 23 anos atrás, quando você inaugurou a Alpharrabio e hoje. Qual sua avaliação?

D- No livro que acabei de citar, falo desse "clima" cultural do ano de 1992 que a meu ver perdurou até a virada do milênio. 1999 foi um ano incrível, de verdadeira efervescência artística e também do pensar. Anos de Celso Daniel uma liderança política rara, um intelectual com uma visão integrada da região, conhecedor profundo de nossa realidade e articulador formidável que muito contribuiu com a circulação artística e cultural. Foi de sua inteligência rara que saíram nossas mais interessantes iniciativas e instituições, como a Câmara Regional, o Consórcio Intermunicipal Grande ABC e outras. Celso exerceu um papel importantíssimo no fomento ao pensar a região e a projetar o futuro da cidade de Santo André através de uma ampla e profunda consulta e discussão popular. Sua morte trágica e prematura desligou o que vinha sendo (re)ligado, tecido e costurado em nossas políticas regionais. Sua ausência abriu um enorme vazio cultural que ainda nos custa preencher. Falta-nos ousadia para (quase) tudo até para retomar o que foi conquistado e, muitas vezes, jogado nos porões do esquecimento e da indiferença.

P- Para finalizar: qual a importância da Cultura na sociedade?

D- A Cultura, no seu sentido antropológico, não pode e nem acontece à margem da sociedade, faz parte intrínseca dela é matéria da qual é composta, ainda que muitos de seus elementos não saibam nem desconfiem disso. A educação formal precisa preparar indivíduos críticos que saibam reconhecer-se em sua própria cultura. Cultura são os resíduos mais resistentes da história, matéria da qual somos amalgamados.


bottom of page